A Construção da Morte

A Construção da Morte

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A morte sempre está aí, à ronda, um desfecho natural e obrigatório da vida. Passamos por ela muitas vezes, ou é ela quem atravessa nossa existência para nos lembrar de nossa finitude.

Aos três anos uma cerebelite quase me levou ao encontro dela. Talvez, não de imediato, mas as sequelas poderiam ter abreviado minha existência. Depois foi uma púrpura, infecção grave no sangue. As duas vezes fui salvo por meus pais e pelo dr. José Luz, que fez o diagnóstico imediato e me encaminhou com urgência para especialistas. Poucos anos depois, foi ele quem morreu, ainda moço. Havia me evitado a morte duas vezes. Imagino que de muitas outras pessoas. Há um sentido nisso? Há lógica na vida e na morte?

a morte2Em Decálogo, o filho pergunta ao pai ateu o que acontece quando alguém morre. As respostas são dadas. Mas são insuficientes para esse mesmo pai compreender a morte quando ela leva quem ele mais ama. Escapamos da morte diariamente. No acidente de carro que não acontece, na doença que não adquirimos, na fatalidade que não se consuma, se é que isso é possível. Mas por vezes, e é necessário que seja assim, a morte não passa de raspão. Pega˗nos em cheio, sem possibilidade de recusa ou escapatória.

O helicóptero que desce do céu sob uma casa e mata cinco pessoas, entre elas o filho do governador, é uma dessas fatalidades. A engenharia precisa evoluir mais para evitar acidentes assim, reduzindo as estatísticas de acidentes e de mortalidade. Mas uma bala na cabeça de uma criança de dez anos, atirada deliberadamente por um policial, vai muito além da inexorabilidade da morte. Aqui não é o acaso nem mesmo a infelicidade inescapável da morte. Trata­˗se de extermínio contra crianças e jovens, em geral negros e pobres, que moram em nossas periferias.

O Estado, em sua formação, era o domínio da força para manter a ordem social. Hoje, o uso da força é permitido. Mas, no estado democrático, deve ser minimizada em favor de políticas públicas de proteção integral ao indivíduo. A ação de um agente do Estado no extermínio de uma criança subverte a lógica da morte como algo imprevisto e natural. Passa a ser uma construção social perversa e bárbara.

E, no século 21, terrivelmente, é isso o que acontece no Brasil.

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Wanderley Garcia

 

 

 

 

 

Wanderley Garcia é jornalista e professor no curso de jornalismo da Unimep.

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