Ninjas, Najas e Eus que sabem

Será que, além das flechas, Cupido tem agulha e linha pra me emprestar? Preciso remendar um desastre amoroso. Minha grande amiga Ana Ninja (nome e apelido inventados, é claro) quebrou o braço do noivo. Agora o rapaz quer o divórcio antes do casamento. Diz que nunca mais vai dormir ao lado de uma assassina em potencial.

Os dois estavam noivando em um motel, onde resolveram até dormir. Na manhã seguinte, o rapaz acordou primeiro, com a infeliz ideia de despertar sua futura ex-noiva com um “sustinho de bom-dia”. Ora, a pobre Ana só é ninja quando dorme. Acordada, é uma garota frágil, cheia desses traumas com a violência urbana, que tornam qualquer mulher atraente aos olhos de homens protetores. Fábio, o noivo, além de protetor, não tem semancol e adora brincadeiras sem graça. Nem pensou duas vezes. Agarrou os pulsos da moça, puxou-os para o alto, imobilizando-os contra a cabeceira da cama, e disse: “Vou te amarrar, dorminhoooca!”

Meio dormindo, a garota reagiu com um chute que treinara à exaustão, nas aulas de defesa pessoal. O golpe saiu rápido, forte e sem rumo, junto com seu grito de pavor. Foi o suficiente. Braço e noivado partiram-se.

Agora preciso convencer o asno engessado de que a moça não tem dupla personalidade. E ai de mim se eu falhar! A Ana Lacrimosa vai continuar choramingando nos meus solidários ouvidos até me afogar ou reatarem. Acontece que também não quero mentir. Todos nós temos, de certo modo, bem mais de um eu. Temos um eu primitivo, que agride quando se sente acuado, sem que tenhamos tempo de analisar a situação. Temos um eu que sabe nadar ou andar de bicicleta. Um eu que fala ou entende uma língua estrangeira. Um eu skatista, um que surfa, um que dança, outro que desenha.

Esses eus sabem como agir sem que precisemos nos dar ao trabalho de pensar. Raciocínio toma tempo. Quem sabe nadar cai na água e sai nadando. Não vai pensar se primeiro bate o braço ou a perna. Durante uma sequência de acrobacias, um ginasta não fica meditando, ponderando e decidindo. Ele faz o que aprendeu a fazer durante os treinos. Para isso treinamos. Para desenvolver eus com habilidades específicas.

O eu que reage a ataques já vem com a gente, de fábrica, mas podemos aprimorá-lo com aulas de artes marciais, como a Ana fez. O problema foi que ela se esqueceu de mandar fazer uma camisola ou, melhor ainda, uma tatuagem com os dizeres “Perigosa quando dorme”. Sem uma consciência para gerenciar tantos eus, os noivos inconvenientes correm perigo.

Quer saber? Se o Fábio não aceitar minhas explicações, vou lhe dizer que, lá pras bandas do inconsciente, a Ana já devia estar meio cheia de suas brincadeiras bestas. Isso mesmo! E tem mais: vou lhe dizer que, se eles não reatarem, vou matricular a Ana num curso de pole dancing, para desenvolver um eu sedutor capaz de encontrar namorados compreensivos. Bom, pelo menos é isso o que o meu eu naja está me mandando fazer.

Carla Ceres é escritora

19 thoughts on “Ninjas, Najas e Eus que sabem

  1. Estimada Carla,

    Seus textos são autênticas obras de arte… Você tem o dom de abordar temas complexos, existenciais, de maneira leve, agradável, mas sem perder a contundência e profundidade. A questão das personas, das várias máscaras, personalidades que contemplamos desvela-se crucial para nos aproximarmos de fato de quem somos… É mesmo um grande prazer poder lê-la.

    Esteja bem!

    1. Muito obrigada, Adelino! Você entende, de imediato, aonde eu quero chegar com os meus textos. Nunca tive um leitor filósofo, por isso me surpreendo quando leio seus comentários e penso: “Olha só! O Adelino me pegou no pulo, outra vez.” 🙂 Abraço!

  2. kkkk… Carlinhaaaaaa… “Ser ou não ser, eis a questão”… Acho que a Aninha arrumou um “jeitinho” de se livrar de um chato nada criativo! Melhor, os pesadelos… que um romance com esse pano de fundo… Freud nenhum explica um “sadomasoquismo” desse quilate!
    Bjs. Célia.

  3. Olá Carla, e que tudo esteja bem contigo!

    Sempre encantando com teus textos deveras inteligentes, e sendo assim parabéns por mais este!
    Penso que o descuidado noivo nunca ouviu aquele velho dito popular, que diz o que quer, ouve sempre o que não quer!
    No caso dele seria assim, quem gosta de surpreender, quase sempre sai surpreendido!
    Acredito que ela não deve se preocupar, e se ele não estava procurando um motivo para se livrar da responsabilidade, sei lá, talvez!

    Obrigado Carla por compartilhar teus pensamentos em textos que incitam os leitores a pensar, e emitir tantas várias opiniões. Obrigado pela amizade e visitas também e assim desejo que tenha em teu viver a felicidade intensa, abraços e até mais!

    1. kkkkk Também detesto esse negócio de gente me segurando os pulsos, Bel. Por isso nasci naja em pele de cordeiro. Sabe como é, cobras não têm pulsos. 🙂 Beijos!

  4. Olha, Carla, pensando nesse casal, concluo que o Fábio não quer aceitar suas explicações porque está com vergonha. Ele sabe que a menina não tem dupla personalidade e que ele é que foi o desastre da história. :), muito legal!
    Beijo!

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