O REINO DE DEUS E AS ESPERAÇAS DO NATAL

O REINO DE DEUS E AS ESPERAÇAS DO NATAL

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Não é fácil falar em coisas boas, em alegrias natalinas, num tempo tão marcado por crises e usurpação de direitos. Durante um grande período relutei – inclusive – em escrever este artigo, tamanho o sentimento de desolação e angústia diante do cenário político brasileiro e quiçá internacional. Talvez em um olhar panorâmico pelo mundo, especialmente nos campos da política e da economia, não encontremos muitos motivos para celebrar.

Vem, então, à mente a imagem e representação do salmista – deportado violentamente de sua terra, em tempo de exílio, no contexto da dominação babilônica, a entoar um profundo lamento: “Às margens do rio da Babilônia nós sentávamos chorando, com saudades de Sião. Como é possível louvar ao Senhor em terra estranha” (Salmo 137, 1.4). Talvez seja esse o sentimento comum a nos assolar e afligir, diante de uma realidade que nos violenta, solapando as possibilidades da vida presente e futura, reduzindo-nos a condição de cativos em nossa própria terra.

Longe de ser ofuscado por concepções estreitas e opressões do poder, o brilho solene e essencial do Natal transcende a tudo isso e continua sedo, sobretudo, caminho de esperança. A Encarnação de Deus aponta perspectivas tanto existenciais quanto político-econômicas. Na verdade, tais dimensões se apresentam inseparáveis na dinâmica revelatória. Há um convite, um chamado por parte de Deus, que envolve o ser humano em sua totalidade, tanto no plano existencial quanto no âmbito da estruturação da vida em coletividade.

No plano existencial, ao assumir a condição humana, Deus abre para o ser humano as possibilidades do divino. No Natal, o Divino se manifesta no humano e o humano é alçado à condição do Divino. A deificação (theosis) consiste na concepção do humano como ser divino, transcendente. Se Deus quis estar em plena união com o humano, vivendo sua jornada existencial, o humano pode se colocar, em sua existência, numa profunda comunhão com o divino. A vida humana passa a ser também sagrada, pois é vida divina.

Só essa compreensão já traz em si consequências e implicações fundamentais para o campo político-econômico. A sacralidade da vida, de toda vida, coloca o humano como elemento central de todo e qualquer projeto societário. Toda postura que venha a promover a degradação, a segregação, o desprezo pela vida humana não se alinha com a revelação divina.  Assim, um projeto político-econômico que não tenha o humano como preocupação primeira, como finalidade última, encontra-se em total contradição com os ensinamentos de Jesus.

Nos evangelhos das comunidades de Marcos e Lucas encontramos a expressão “Reino de Deus”. Ao longo de suas narrativas, Marcos e Lucas vão apresentando indícios, pistas do que seria o Reino de Deus. O ponto fundamental é que Jesus, com seu ministério, instaura o Reino de Deus. A chave para se compreender o sentido do Reino encontra-se justamente nas parábolas, narradas pelo próprio Jesus. É interessante pensar as parábolas como o mais perto que conseguimos chegar de Jesus nas narrativas bíblicas. Por meio das parábolas talvez consigamos ouvir a voz do próprio Jesus. As parábolas delineiam o Reino, sedimentado na justiça e na solidariedade, no amor incondicional, no poder como serviço, na integridade da vida que se faz entrega e comunhão.

A celebração do Natal deve ser ocasião para nos recordarmos de tudo isso. A encarnação de Jesus carrega a beleza e a força de renovar toda a esperança, apesar de nossa momentânea perplexidade. Celebrar o Natal é também resistir e perseverar, reafirmando a convicção no projeto de Reino de Deus em terra estranha. O Natal continua a nos convidar a cantar as possibilidades da existência e a beleza que a vida pode alcançar, mesmo diante da brutalidade e violência de projetos políticos e econômicos alheios à dignidade humana.

Em Jesus Cristo nos deparamos com um convite, um retumbante chamado. A deificação do humano atribui sentido transcendente à existência. A vida que se projeta para muito além da materialidade e das disputas de poder. A política e a economia, quando articuladas a partir da sacralidade do humano, carregadas de vida, alma e coração, colocam-se, indubitavelmente, a serviço do Reino de Deus. Que o sentido perene do Natal continue a nos inspirar e impulsionar na busca pela construção do Reino, lugar de vida em abundância para todos.

 

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Adelino Francisco de Oliveira é doutor em filosofia pela Universidade Católica de Braga (Portugal) e professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia, campus Piracicaba. 

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